quarta-feira, 30 de março de 2011

Cap. 10

A batina varria as macegas. Padre Bianco elogiou o pomar, a vaca leiteira. John contou que Formosa era o orgulho da família, vinte litros por dia. Só comia pasto da melhor qualidade, pois aquelas eram as terras mais férteis de South Lake. Desde sempre, dos McHurley. Desde a chegada das primeiras carroças. Desde o tempo que só nascia gente decente na cidade.

— Que conversa é essa? —Padre Bianco tocou o braço de John. — Comigo não precisa de meias palavras.

Pararam à sombra de uma goiabeira. McHurley tirou o cachimbo da boca. A história era medonha, mas o padre precisava saber.

— Há dez anos, South Lake era um exemplo de harmonia. As famílias trabalhavam duro, frequentavam a igreja. Os jovens iam à escola e ajudavam no campo. Tinham futuro certo seguindo os passos dos pais. Até que o filho de um colono quebrou o equilíbrio. O maldito escutava rock'n roll. Fugia da enxada para tocar violão. Dizem que até puxava um fuminho. Certo dia, falou para mãe que ia acampar no lago com a namorada. O pai não podia saber, jamais permitiria. A mãe encobriu a história. Inventou que o filho passaria o final de semana na casa de um amigo. Mochilas feitas, os dois andaram até a encruzilhada limite de South Lake. Lá, o maldito recusou seis caronas e tocou sete canções. O sétimo carro a parar era do cramunhão. Por dois anos ninguém soube o paradeiro do casal.

Padre Bianco mostrava o branco dos olhos. A testa pingava.

— Aonde foram parar?

— Da garota ninguém sabe — McHurley colocou o cachimbo na boca. — Por certo, caiu na vida de perdição.

— E o rapaz?

— Viu os cartazes do show de hoje à noite? — McHurley levantou a sobrancelha. — Desde que o maldito alcançou o sucesso, todos os jovens só pensam em sair de South Lake. É inadmissível. O show não pode acontecer, Padre Bianco.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Cap. 9

A van estacionou em frente ao clube. Cabeça raspada, alargador na orelha direita, jaqueta de couro. O motorista a contornou e abriu a porta lateral. Henry Salt e Joe Barry desceram com cases de instrumentos. O tênis preto de Steve Harris tocou a calçada. Cabelos cobriam o rosto. Tirou os óculos escuros. Os eucaliptos sacudiram as folhas. Steve atravessou a rua. Parou antes da grama. O lago agitado. Steve cospiu no chão.

— A guitarra está no palco — gritou o motorista. Tirou o bumbo do porta-malas.

Steve colocou os óculos. Girou a ponta do tênis sobre o cuspe.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Cap. 8

Ossos de leitão nos pratos. A travessa vazia. Padre Bianco tinha o canto da boca marcado de vinho. John McHurley equilibrava a cadeira em dois pés. Sacudia o fósforo. Fumaça no cachimbo.

— Não falei que o leitão de Ellen era um sucesso?

Mesmo sem provar outros leitões da região, Padre Bianco concordou que o assado era tentador perante o pecado da gula. Receita de família trazida pela bisavó de Ellen, uma das primeiras mulheres na colonização de South Lake. A esposa de John McHurley usava os cabelos loiros presos com lenço branco. Falava pouco, mas não escondia a felicidade de ter um novo padre na cidade.

— Por que não limpa essa bagunça e traz a sobremesa? — disse John. — O padre veio por assunto sério.

Ellen saiu com a travessa e os três pratos. McHurley chamou o padre para esticarem as pernas, conhecer a propriedade. Padre Bianco preferia experimentar o doce de Ellen. McHurley coçou a barba. Havia certas coisas que o padre precisava saber. A sobremesa esperaria.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Cap. 7

Nove da manhã quando cheguei em casa. A mesa posta para o café. Adoro pão quente com margarina. Tia Ruth veio do corredor com bobs no cabelo e a cachorrinha no colo.

— Comendo pão?

Tia Ruth é a irmã mais velha do meu velho. O que sempre fez dela duplamente velha. Desde que meus coroas saíram pra comprar cigarros e nunca mais voltaram, me criou. Depois de se aposentar da escola, Tia Ruth passou a se dedicar à micropoodle Lili e a igreja. Com a falta de padre, virou comentarista de novela: “Acabada, a-ca-ba-da, não sei como ainda chamam para encenar”. Mas sabe qual a grande especialidade de Tia Ruth? Perguntas que conhece a resposta.

— Não dormiu em casa?

— Plantão do Miles na pousada. Perdemos a hora jogando carta — respondi. Tirei a louça para a pia.

Menino direito, trabalhador esse Miles. Ótimas notas. É o que diziam as professoras, ex-colegas de Tia Ruth. Por isso, era protagonista de todas as desculpas.

— Estranho, o italiano ligou cedo — Tia Ruth servia a xícara de café. —Reclamou de você tocando violão na praça em plena madrugada.

Não era a primeira ligação do italiano. Achava que eu era folgado porque recusei a ótima proposta que me fez. Meio salário mínimo para acordar todo dia às quatro da manhã, amassar pão, derreter junto ao forno pra abrir a padaria às sete, pontualmente. Oportunidade de ouro para quem está começando. Gringo cara de pau.

— O homem só quis ajudar — disse Tia Ruth. Deu um pedaço de pão para Lili.

— Esse é o problema de South Lake, tem muita gente assim querendo ajudar.

— Hoje é a primeira missa do novo padre — disse Tia Ruth. — Você podia tocar.
Depois de tanto tempo da primeira comunhão, nem lembrava como tocar as músicas da igreja. Fui para o quarto.

— Ok. Só espero que não se meta no show desses Bastardos.

Tia Ruth podia ficar tranquila, meus planos eram outros.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Cap. 6

A porta da casa paroquial entreaberta. John McHurley tirou o chapéu. Os cabelos revoltos eram palha em chamas. Sons de cacos. McHurley ergueu a sobrancelha e seguiu pelo corredor a passos leves. Empurrou a porta do banheiro. Nada. O fogão arredado para o lado da pia. A mesa em diagonal. Um dos bancos, de pernas pra cima. Uma trilha de sangue no chão.

— Padre Bianco? — gritou McHurley.

A porta da cozinha para rua, aberta. Uma sombra humana projetada no chão. Um braço atravessou o vão da porta. Escorou a vassoura, a pazinha. Solas grossas no capacho.

— Desculpe o atraso — disse Padre Bianco. Puxou o fogão para a posição original. — Precisei dar um trato na casa.

Pelo jeito o padre não se deu muito bem com o escuro, disse McHurley. Machucou o pé nos cacos? Padre Bianco contou que não estava sozinho. Dois antigos moradores não o deixaram dormir.

— O povo fala de espíritos zombeteiros na região — disse McHurley. — Nunca acreditei.

— Espíritos não, ratos — Padre Bianco sacudiu as mãos mostrando o tamanho dos bichanos. — E tiveram o que mereciam.

McHurley coçou a barba. O chapéu amassado contra a camisa. Não imaginava tanta frieza num homem de Deus.

— A lei divina é a lei da vida: o maior come o menor — Padre Bianco arrastou a mesa de refeições.

— Come?

Modo de dizer. Desviraram o banco. McHurley o empurrou até tocar o pé da mesa. Ellen tinha costume de servir o almoço pontualmente. O leitão estava no forno. Dois minutinhos, pediu Padre Bianco. Tempo de lavar as mãos. Saiu para o banheiro. Água na louça da pia. McHurley seguiu os pingos de sangue. Iam do fogão à mesa de refeições. Levantou a barra da tolha. Embaixo da mesa, o rabo de um dos bichanos. Coçou a barba.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Poster by Luiz Barretto

Cap. 5

Na manhã seguinte, apenas a areia amassada com as curvas da garota azul ao meu lado. O cabelo vermelho balançava no trilho do nascente para o meio do lago. Que garota! Era real. Abotoei a bermuda, fechei o zíper. Areia entre as nádegas. Abracei os joelhos. Passo a passo a garota azul afundou, até desaparecer. Peguei o violão. O sabia deu o tom. Manhã perfeita para um blues.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Cap. 4

O Lago borbulhava cada vez mais. Areia nos meus olhos, cabelos. E o rastro vermelho continuava a emergir. Cada passo revelava uma parte do corpo. Braços finos, seios pequenos, coxas desenhadas. Diabos, era a garota mais bonita que já vi. Nua, a poucos metros. E tinha a pele azul, ou pelo menos a lua fazia parecer assim, apenas os cabelos cor de fogo escorridos sobre as costas. Vinha na minha direção. Os olhos azuis que de tão claros pareciam brancos. Cheiro de margarida. Só mais alguns passos. Levantei. Correr? Chorar? Agradecer aos céus? Esticou a mão. Segurou meu ombro. Toque gelado.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Cap. 3

As luzes da varanda apagadas. Da rua se via apenas a silhueta em forma de trapézio. Molho de chaves nas mãos. Comparava os tamanhos. Restava uma tentativa. Dentes largos, oxidada. Encaixou na ranhura. E o giro. A porta deslizou. A luz da rua mostrou a poltrona, o crucifixo na parede. Interruptor. Nada de energia. Deixou a mala ao lado da porta. As tábuas do assoalho rangeram. Seguiu pelo corredor. Gruídos de ratos. Passinhos ligeiros. À esquerda, o banheiro. Teias no cabelo. A cozinha usava toda a largura da casa. A janela basculante iluminava a mesa de refeições, o lampião. Tateou até o fogão. Caixa de fósforos. De volta à mesa, a canela esbarrou na quina do banco comprido de madeira. Retirou o bojo do lampião. Riscou o fósforo. Lá fora, uma mão espalmada no vidro. Barba ruiva, olhos fixos, chapéu de palha. A mão do padre tremeu. Tombou o lampião. O fogo atravessava a toalha. Precisou de três copos d’água pra controlar. Suspiro. Da sala, passos. O copo escapou da mão do padre. Cacos. O ruivo na porta do corredor. Botas sujas, camisa xadrez.

— O senhor é o novo padre? — coçou a barba vermelha.

— Pode levar o que quiser, só não me faça mal.

— De forma alguma, padre — tirou o chapéu. — John McHurley, a seu dispor. Soube da sua chegada no ônibus da noite e passei para dar boas-vindas.

O padre sentou, a mão direita ao peito.

— E quase me mata do coração. Não basta essa casa sem luz?

Há três meses que a cidade não tinha padre, explicou McHurley. Por isso, a arquidiocese cortou a energia. Também, por isso, a fila de espera para batizados e casamentos era extensa.

— Passei também para um convite. Que tal um almoço lá no rancho amanhã?

— Ótimo. Preciso conhecer a região.

— Não vai se arrepender. Ellen faz o melhor leitão assado de South Lake — McHurley estendeu a mão — Qual seu nome padre?

— Tony Bianco.

— Onze e meia esteja pronto, Padre Bianco — disse McHurley. — Há certas coisas sobre South Lake que precisa saber.

Combinado, onze e meia. McHurley pôs o chapéu. Despediu-se inclinando a cabeça. Os saltos das botas ecoaram do corredor. A caminhonete arrancou. Grunhidos. Padre Bianco riscou o fósforo. No canto do fogão, dois ratos.

terça-feira, 1 de março de 2011

Cap. 2

A televisão iluminava o rosto miúdo de Miles. Boca aberta, o fio de saliva acabava no ombro. O cabeludo ruivo entrou na recepção. Óculos escuros redondos. Estojo de guitarra na mão. Tocou a sineta. Miles resmungou. Insistiu a sineta. Os olhos de Miles abriram embaçados. O polegar e o indicador removeram a remela.

— Te conheço? — Miles contraiu os olhos.

O cabeludo apontou para o cartaz no mural.

— Steve Harris?! — mãos na cabeça. Virou uma folha de formulário — Um autógrafo, por favor.

O braço cruzou a tampa do balcão. Puxou a gola de Miles.

— Olha, moleque, é tarde pra tietagem — o antebraço trazia o rosto do demônio tatuado — Passa a chave.

— Desculpe, é que mal posso acreditar — disse Miles.

— Não foi escolha minha — soltou a gola. — Essa espelunca é a única opção na cidade.

Miles arrumou a camiseta e entregou as chaves do melhor quarto. Steve subiu as escadas. A lâmpada do corredor, queimada. Antes de entrar no quarto, escutou: “Henry Salt!? Joe Barry!? Oh, meu deus”. Suspirou. Virou a maçaneta. Cama de solteiro. Cobertor colorido. Forro mofado. Armário duas portas. E nenhum espelho. Imagine o pior quarto, então. Ao lado da pia, a janela aberta. Steve largou a mochila na cama. Deixou um trilho branco, ao passar o dedo no marco da janela. Lá fora, a igreja, a praça, a avenida central. Cidade pequena nunca muda. Uma rajada de vento bateu a persiana. Steve trancou a janela.